Um buraco não é um ponto. Um ponto é um adensamento no espaço. Mas o corpo, o corpo é um ponto no universo cheio de cavidades, que são buracos. Buracos vermelhos, buracos irrigados por vermelho-sangue. Vermelho-sangue é vermelho-vivo, também chamado de ‘Vermelho Tóquio’. 


"O ‘vermelho vivo’ (kurenai) é uma cor tradicional japonesa, e como tal possui ressonâncias importantes, tanto na história artística e literária do país, como nas sensibilidades dos leitores. Era uma cor associada a festividades. Ela é normalmente traduzida em português como ‘escarlate’ ou ‘carmesim’ (...) (associadas ao crime, à prostituição, à sexualidade)." (CUNHA, 2015, p. 22)



Toda boca tem um vermelho cru de carne.[1]

(Qual é mesmo a cor das vísceras?)

O livro de anatomia nunca passou de suposição e o corpo paciente afogado em formol sempre foi tão monocrômico quanto fétido. Monocromia de carne sem vida, corpo-coisa – e eu a sofrer com a imaginação de sua história que ficou para trás, seus entes, seu brilho no olhar de olhos que já nem estavam mais lá – e nós a gretarmos os forames, mínimos que fossem, as cavidades virtuais. Como a vagina. A vagina é uma cavidade virtual atualizada pelo sexo vaginal. Apesar de todo o  mecanismo que possa ser descrito sobre o processo de excitação genital e a fisiologia do orgasmo, o gozo sempre os ultrapassará como uma trapaça que o fluido aplica na palavra – questão de mucosa, e não de língua, ou talvez de uma língua ainda da lambida que não termina...[2]

Não sabemos se os corpos em risco do filme Aka Ana (França, 2008) gozam, corpos das sete prostitutas japonesas a quem Antoine d’Agata insiste em chamar pelo mesmo nome: “Iku”. Foi de Iku que ele nomeou a personagem feminina que se relaciona sexualmente com “A”, o homem de seu roteiro fílmico, papel que criou como autor e que ele mesmo desempenhou – “A” de Antoine d’Agata? Corpos selados pela vulnerabilidade da profissão... Porque o amor é uma doença sexualmente transmissível. Porque existem as outras, existe a violência, existe a possível gravidez indesejada, existe a exposição à tela, aos olhos que gretam como aqueles frente ao cadáver no laboratório de anatomia.

Não obstante, a essa dissecação íntima realizada pela câmera que vasculha poro a poro, soma-se a exposição das “Ikus” através de suas cartas enviadas a D’Agata, num engenhoso processo de recortar-colar entre palavras e imagens que compõem Aka Ana – é o seu “trabalho de citação”, por assim dizer, que ele realiza através da bricolagem audiovisual.

Mas não somente isso: D’Agata dialoga diretamente com o corpo das Ikus. Assim as chamo, no plural: no lugar de Saki I., Nao W., Izumi H., Kana K., Rei A., Keiko I. e Sayo H.. É como uma espécie de codinome que me ajuda a referi-las na pesquisa, mas não deixando de levar em conta que são várias pessoas, enquanto D’Agata se dirige a todas pelo mesmo pseudônimo, no singular: Iku. Por isso, no filme, suas vozes se sucedem e retomam a frase: “Você me chama de Iku, mas meu nome é ...”, [3] a cada vez variando com o nome de cada uma e trazendo consigo suas próprias questões. Portanto é lacunar a relação estabelecida entre D’Agata e as Ikus, cujos nomes legais chancelam a assinatura de suas missivas, o que as fazem também personagens do filme.

É o fotolivro Aka Ana (D’AGATA, 2017), posterior ao filme, que revela que o texto sussurrado pelas Ikus vem dessa escrita epistolar, uma correspondência via e-mail tecida entre elas e D’Agata depois das gravações, que aconteceram de setembro a dezembro de 2006, durante o outono (aki) no Japão. Lá, essa estação é caracterizada pelo que chamam de Yuma ga Moeru, que significa “montanha pegando fogo”, uma referência ao tom vermelho ardente adquirido pela coloração das folhas (NIPO, 2016) que nos faz lembrar do tradicional vermelho-vivo, também do “AKA” (vermelho) “ANA” (buraco) presente na bandeira japonesa.

O título da obra, portanto, remete ao signo patriótico, mas não somente a ele: a cama redonda e vermelha do set de filmagem materializa seu círculo central, também presente na genitália feminina tão explicitamente evidenciada no filme através dos inúmeros closes e supercloses. Se traduzida a partir do inglês, “Aka Ana” pode ser uma referência à ‘desdenominação’ trazida verbalmente na narrativa e que acontece também no âmbito visual, já que o ato sexual é mostrado como gestos que saturam a tela e indefinem os corpos. Corpos de Iku, corpo de Ikus – ‘também conhecida como’ (é o que significa aka ou a.k.a., abreviação da expressão em inglês “Also Known As”).

As performances vocais apresentadas em voz off não são fruto da gravação in loco, ao pé do ouvido, ao pé da cama, ao pé da letra...[4] São sussurros como vozes mentais que segredam prazer, dor ou mesmo cansaço para um interlocutor subentendido e único (“tu”), sem qualquer intervenção musical. Junto ao som direto dos gemidos e murmúrios ofegantes de respiração produzidos nas filmagens, esses sussurros falados em japonês revelam uma faceta documental da obra, em oposição ao filme de ficção, formando uma textura sonora que transborda sensações, mesmo para quem desconhece a língua japonesa.

A narrativa verbal que conduz o filme é puramente sonora e se aproxima de uma literatura testemunhal permeada de aspectos pessoais apresentados como uma variação entre o ensaio poético e poemas reflexivos. Por isso as cartas das Ikus parecem ter sido escritas “ao sabor do pincel”, gênero literário japonês (zuihitsu 随筆) inaugurado por Sei Shônagon (2013) com O livro do travesseiro. Ao sabor do pincel, uma das Ikus diz no filme:


"Eu quero te contar a história de algumas garotas. Aquela para quem o sexo é uma arma que ela usa para matar o homem. Aquela para quem o gosto da saliva, o gosto do sêmen e o gosto do vômito que se misturam é o sabor da vida e um alívio. Aquela que tenta viver. Sem sentir as feridas do coração e do corpo. Aquela para quem trabalhar no bordel continua sendo uma coisa incompreensível. Aquela que vive acreditando que o sexo e seu corpo se reduzem a dinheiro. Aquela que foi estuprada pelo homem que ama. Aquela que foi criada como um animal doméstico, por um homem rico. Aquela que se pergunta se ela é suja, uma suja maquinaria de sexo, comprada por homens sujos. Aquela que pensa: ‘Eu o quero!’ e nada mais, quando ela escolhe um homem. Aquela que se tornou dependente de seu cafetão e da masturbação. Aquela que, rejeitando o amor, obedece ao sexo, ao homem e à sua vagina. Aquela que sabe que vai morrer em breve e sente desejo pelo amante. Aquela que pensa estar morta desde que foi estuprada e espera se vingar por meio do sexo. Aquela que recebeu o esperma de cinquenta homens e gozou. Aquela para quem ver a si mesma transar é o único ato que a torna consciente de sua vida." (SAKI, 2006 apud D’AGATA, 2017, s.p., tradução nossa)[5] 

A relação entre cartas e sexo remonta ao Japão tradicional; já no contexto contemporâneo, Jacques Derrida associa a carta à literatura, entendendo esta como aquela: “A mistura é a letra [lettre, também “carta” em francês], a Epístola, que não é um gênero mas todos os gêneros, a própria literatura.” (DERRIDA, 2007, p. 58). Nesse sentido, ao propormos Aka Ana como sendo uma escritura expandida, entendemos que essa literatura expandida se apresenta sob a forma do gênero híbrido “filme-carta” (DUBOIS, 2004).

Se D’Agata respondeu às epístolas das Ikus ou o que respondeu, não sabemos, e não é isso que importa. Importa que a correspondência pôs em movimento afetos e provocou criação, criação, pois as Ikus não apenas escreveram com sensações, elas escreveram sensações.[6] Tal qual D’Agata reescreveu as cartas ao colá-las nas cenas de sexo explícito inspiradas em Madame Edwarda, livro de Georges Bataille (1978) “em que o erotismo é representado sem rodeios, abrindo para a consciência de um dilaceramento (...).” (BATAILLE, 1978, p. 11).

Com o desejo sendo consumado no proscênio das gravações, Aka Ana apresenta cenas filmadas com luz infravermelha, permeadas de penumbra, que muitas vezes torna indecifrável aquilo que se vê na tela, cujas bordas, recortadas pelo jogo de sombras, segredam visualmente a relação sexual entre os corpos captada por uma câmera que quase não se move e cujos enquadramentos – do plano geral ao primeiríssimo plano – têm como paisagem o próprio corpo. Essa composição, imbricada à envolvente narrativa verbal, mobiliza uma dimensão expandida da literatura: não a de personagem literário, nem de narrativa cênica. É o poema háptico, a palavra como gesto, seu gesto como poesia, a poesia do sexo, a poesia apesar do sexo, já que o ato sexual explícito no filme explode a palavra...[7]

Ao bel-prazer, num sentido literal, D’Agata criou sua obra, que é tão híbrida quanto limítrofe; a rigor, fez seu filme, fazendo amor. Híbridos também são este artigo hipertextual e a videoperformance e o livro-objeto com os quais compõe um percurso crítico multimodal sobre Aka Ana. Tanto aqui, quanto em Livro-bichobjeto, a pessoa leitora tem em mãos textos para serem lidos, percorrendo-se a superfície da palavra ao bel-prazer. No livro-objeto, essa superfície é a página, a ser tocada diretamente através da materialidade do papel; neste hipertexto, a superfície da palavra é a tela, cujo toque virtual se dá pelo intermédio do mouse. Em ambos, a palavra como corpo erótico de Aka Ana vibra, seja com o tátil da plasticidade, seja com o háptico das texturas virtuais, recobrando o tato dos corpos que se tocam no filme. Neste, dois são os tipos de superfície que se entremeiam: a tela do corpo (a pele) e a tela da memória (a imagem). O resultado dessa conjunção é uma hapticidade que tende a “engolfar” o espectador (MARKS, 2001).

Foi escutando esse elo-Eros que por Aka Ana me enredei, cientificamente falando. Mas foi pelo grão da imagem, primeiramente, grão a grão, pelo buraco da fechadura, que quis conhecê-lo mais e mais e mais. Como se já soubesse o caminho ou o adivinhasse... Como se já esperasse receber suas cartas de filme-carta, como se a mim elas fossem endereçadas... Como se o filme tivesse sido feito para me chegar como extravio, a fim de ganhar vida e continuar a deriva... poética, e agora científica...

No entanto, Aka Ana não é feito de palavras eróticas que se adensam, mas sim de uma cadência palavral como se ao pé do ouvido estivesse, da qual emana a orgasmia poética que faz desse filme o gozo do corpoimagem (DULTRA, 2018). Assim, se a pele da palavra poética goza, a faz inteira tremer – e é indizível o que sente e é também inescrevível, por isso recorrer às texturas objetuais de um livro-objeto. “Redescubramos o tacto” (MARTINS, 2011, p. 21), prescreve o poeta em suas Lérias... O  tato coberto, talvez, por codificações que fazem dos encontros clichês: a prostituta que encontra o cliente, o fotógrafo que encontra a manequim, o cineasta que encontra a atriz, a câmera que encontra o cenário, um sexo que encontra o outro, a carta que encontra o destinatário...

A despeito dessa série de correspondentes, D’Agata des-cobre o tato, o tato de fato, o tato do falo, rompendo a fronteira voyeurista da lente, tão própria ao fotógrafo: “Não é o olhar que um fotógrafo tem sobre o mundo que me interessa, mas a sua relação, a mais íntima, com ele” (D'AGATA, 2007 apud MIGLIORIN, 2008, p. 127). Assim, o artista se coloca entre os corpos filmados, na radicalidade de estar dentro deles, lhes recobrando um lugar, para além de toda utopia: “(...) no amor o corpo está aqui.” (FOUCAULT, 2013, p. 16, grifo do autor). É sua própria derme de artista que D’Agata imprime na película cinematográfica, entregando ao espectador matéria para o voyeurismo, como um convite – à pornografia? Ao erotismo? Ao obsceno? Ao sensual? Sobre o período de imersão, D’Agata declarou:


"Eu me imiscuí em suas vidas, avançando na obscuridade com a perspectiva confusa de um cinema de excesso. Fotógrafo, eu não posso, impunemente, escapar da realidade, nem me curvar a ela. A única saída possível: renunciar ao discurso e fazer um relato bruto de minhas transgressões, entre a forma e a matéria, a palavra e a carne, o olhar e a experiência. Uma lenta agonia sob o selo da consciência e da ironia." (D’AGATA, 2013, s.p., tradução nossa)[8]

 

Sensualidade é a propriedade atribuída ao que dá prazer pelos sentidos. Obscenidade, derivada do latim scena, é o que está fora da cena; sexualmente falando, o que fere o pudor. Pornográfico pode ser considerado o ato de colecionar material obsceno. Por outro lado, pornografia é também, literalmente, “escrito sobre prostitutas” (do grego pornographos: pornē, “prostitutas”; graphos, escritos). Do ponto de vista mercadológico, a indústria pornográfica vende o sexo através da imagem dos corpos. A finalidade não é o prazer do consumidor (muito menos a fruição iconográfica), mas sim o capital gerado pelo fluxo de vendas. Daí nos questionarmos o quanto há de pornográfico e o quanto há de documental em Aka Ana, já que é um filme feito com a atuação de profissionais do sexo exercendo o seu ofício – no limite, foram 120 noites de trabalho, 120 como no romance de Marquês de Sade (2018), Os 120 dias de Sodoma ou a Escola da Libertinagem.

Cento e vinte saídas noturnas que foram roteirizadas por D’Agata em seu “diário premeditado”: “Eu primeiramente escrevi um cenário que tentei fazer acontecer e viver em suas palavras e em sua carne.” (D’AGATA, 2013, s.p., tradução nossa).[9] É como o artista explica o roteiro do filme, que se distingue da escrita diarística presente em Madame Edwarda, realizada por Bataille no sentido usual do diário, como relato de memórias. O livro conta o tórrido e assombrado encontro entre o narrador-personagem e a prostituta que dá nome à obra. Uma vez que esse narrador é um escritor, tal qual Bataille, a narrativa narrativa pode assumir traços de uma autoficção. Embora Aka Ana seja exemplar para afirmar que “o cinema não é uma desculpa para ilustrar a literatura” (GREENAWAY, 2004, p. 12 apud CUNHA, 2015, p, 25), a visceralidade em tela se sintoniza  com a mencionada novela, da qual D’Agata pinça a última frase para epigrafar seu roteiro: “O resto é ironia, longa espera da morte...” (BATAILLE, 1978, p. 41).

Enquanto Bataille classifica Madame Edwarda como um livro erótico, o diretor de O Império dos Sentidos (1976), Nagisa Oshima, considera seu filme como pornográfico. A obra, que inspirou o argumento do “diário íntimo” de D’Agata (MIGLIORIN, 2007), é baseada na história verídica da ex-prostituta japonesa Sada Abe, que vive um caso voluptuoso com seu patrão, no Japão de 1936. Quanto a Aka Ana, nos inclinamos a pensá-lo a partir das pornografias contemporâneas discutidas por Rodrigo Gerace (2015). Elas são “diferentes formas de pensar e projetar o sexo explícito”, dentre as quais se incluem variantes da postpornografia, como a feminista, queer, expandida, etc: “[O postporno] é a apropriação de um gênero, o da representação explícita do sexo, que tem sido até então monopolizado pela indústria.” (GERACE, 2015, p. 266).

Assim, diante das ambiguidades abertas pela imagem pornográfica – “realista, explícita, naturalista, encenada, dissimulada, fake” (GERACE, 2015, p. 37) –, propomos, com Aka Ana, a modalidade “metapostporno”, sendo a metapornografia “(...) uma pornografia feita em cima da pornografia produzida no mundo ou daquilo que produz a pornografia no mundo (...).” (OLIVEIRA JUNIOR; SOUSA, 2018, p. 448). Na obra d’agataniana, se trata da interação corporal com prostitutas (“profissão pornô”, por assim dizer), sendo que essas relações sexuais se desdobram em imagéticas e verbais, através das filmagens e das cartas. Tais resultados possuem uma dimensão artística que, no sentido da recepção, diz mais respeito a uma obra a ser fruída que uma mercadoria a ser consumida, como o são os filmes pornográficos. Daí o aspecto “pós” (post) da pornografia em Aka Ana, então considerado obra de arte no âmbito da literatura expandida.

Na autoficção de D’Agata, misturam-se não apenas vida e obra, mas também amor e trabalho, pois as Ikus, que não conheciam D’Agata antes das filmagens, passaram a amá-lo trabalhando com ele. O amor é um certo trabalho, o trabalho é um certo amor...[10] É da lógica capitalista se infiltrar nos afetos e colocá-los a serviço de seu poder majoritário – uma micropolítica na qual a ação do desejo está sequestrada e, se existe, onde quer que exista, parece responder (“reagir”) à funcionalidade de girar a roda-viva da vida, pura reatividade (ROLNIK, 2016).

A disponibilidade dos corpos nessa engrenagem é 24/7. Nesse sentido, as Ikus foram pagas? Com remuneração pela transa ou cachê para atuar no filme? Há diferença entre ser prostituta e ser artista? Elas venderam suas cartas? Eram cartas impublicáveis do ponto de vista de quem as escreveu? A exposição maior se deu através da exibição dermomucosa na tela ou da publicização da pele de suas palavras poéticas? Tudo isso não apenas como resposta, mas também como pergunta, compôs o bloco de sensações do qual partimos para pesquisar Aka AnaUma pesquisa que é também de escrita, não apenas das epistológrafas do filme, mas também a minha enquanto artista-pesquisadora. Então talvez lhes roubar o destinatário e voltar às cartas e vídeo-cartas, traindo seu destino.

(Sustentarei?)

“Viver e escrever no cio” (KAPPUS, 2013, p. 33): é o que faço, mesmo quando não quero: a estar sempre ao modo de um cão enlouquecido que fareja com todos os sensores de seu instinto: instinto que é também do sexo, como caça, não a instituição forjada em casa: “Núpcias, e não casais nem conjugalidade” (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 16): por isso insurge um devir-animal impregnando os corpos que suam e ressoam: Amar jamais é estar juntos, mas devir juntos:[11] “Mas como fazer isso, não é demasiado abstrato?”.[12] Me pergunto agora através do professor-filósofo: Não, é real, de uma realidade outra: É estar a escrever no cio, tomada pelo desejo todo do corpo a produzir outro corpo: outros corpos que se pedem vivos, também no cio, como se algo no mundo dependesse deles para existir ou se sustentar.

(Sustentarei?)

Talvez a D’Agata não lhe baste endereçar epístolas para alcançar a radicalidade de Aka Ana. Porém: TODA CARTA É UM CORPO. E o corpo é um ponto no universo cheio de cavidades, que são buracos. Buracos vermelhos, buracos irrigados por vermelho-sangue... “Mas o corpo é um buraco onde cai o corpo. Esta queda em si mesmo comporta uma ciência derradeira, o saber de uma luminosa profundidade física. (...) – e nada se transforma, nada nos olha face a face: somos o outro, o desaparecido das falas, aquele que se perdeu da conversação das imagens.” (HELDER, 2017, p. 165, 167-168). “O que se ergue do fogo é um lugar-corpo.” (CÉSAR, 2017, p. 19). “Aquilo que se escreve é o próprio corpo pregado como uma estrela à púrpura das madeiras, aos lençóis ofuscantes cheios de sangue, de água magnetizada” (HELDER, 2017, p. 112). – E de novo: 


Visualizo um ponto ao acaso

um simples ponto

pode conter toda a doutrina da eternidade

sem necessidade de profetas da luz ou da escuridão

como se cada um de nós fosse apenas um ponto

mais ou menos luminoso

consciente da sua própria incandescência a criar uma distância

entre o nosso ponto e o ponto dos outros

a inventar um espaço só nosso onde às vezes

deixamos entrar os outros

a  tornar-se visível na invisibilidade da multidão

a desenhar uma geografia da vida para aceitar a morte.

(CÉSAR, 2016, p. 11)

 

Uma geografia da vida para aceitar a morte...


– Porém:

Eu não quero fazer poema

quero fazer amor

NOTAS:
[1] Moisés Alves em Coisas que fiz e ninguém notou mas que mudaram tudo (2018, p. 140).

[2] Sandro Ornellas, 2019, informação verbal.

[3] Da legenda em francês do áudio original em japonês do filme Aka Ana: « Toi, tu m'appelles Iku, mais mon nom est... »

[4] Sandro Ornellas em “Prefácio” do livro Coisas que fiz e ninguém notou mas que mudaram tudo, de Moisés Alves (2018, s.p.).

[5] Do original em francês: « Je veux te raconter l'histoire de quelques filles. Celle pour qui le sexe est une arme dont elle se sert pour tuer l'homme. Celle pour qui le goût de la salive, le goût du sperme et le goût du vomi qui se mélangent sont le goût de la vie, et un soulagement. Celle qui tente de vivre. Sans ressentir les blessures de son cœur et de son corps. Celle pour qui travailler au bordel reste une chose incompréhensible. Celle qui vit de croire que le sexe et son corps se réduisent à l'argent. Celle qui a été violée par l'homme qu'elle aime. Celle qui a été élevée comme un animal domestique, par un homme riche. Celle qui se demande si elle est sale, mécanique sexuelle sale, achetée par des hommes sales. Celle qui pense : « Je le veux ! » et rien d'autre, quand elle choisit un homme. Celle qui est devenue dépendante de son souteneur et de la masturbation. Celle qui, écartant l'amour, obéit au sexe, à l'homme, et à son vagin. Celle qui sait qu'elle va mourir bientôt et ressent du désir pour son amant. Celle qui pense être morte depuis qu'elle a été violée et espère se venger par le sexe. Celle qui a reçu le sperme de cinquante hommes et en a joui. Celle pour qui se regarder baiser est le seul acte qui la rende consciente de sa vie. » (SAKI, 2006 apud D’AGATA, 2017, s.p.).

[6] Gilles Deleuze e Félix Guattari em O que é a filosofia? (2010, p. 196).

[7] Sandro Ornellas, 2019, informação verbal.

[8] Do original em francês: « Je me suis immiscé dans leur vie, avançant dans l’'obscurité avec la perspective confuse d’un cinéma de l’excès. Photographe, je ne peux, impunément, échapper à la réalité, ni m’y plier. La seule issue possible : renoncer au discours et donner un compte rendu brut de mes transgressions, entre la forme et la matière, la parole et la chair, le regard et l’expérience. Une agonie lente sous le sceau de la conscience et de l’ironie. » (D’AGATA, 2013).

[9] Do original em francês: « J’ai d’abord écrit un scénario que je me suis appliqué à faire advenir et à vivre, dans ses mots et dans sa chair. » (D’AGATA, 2013, s.p.).

[10] Peter Pál Pelbart, 2012, informação verbal.

[11] Comitê Invisível em Motim e destituição: agora (2017, p. 168).

[12] Peter Pál Pelbart, 2012, informação verbal.