Ao bel-prazer, num sentido literal, D’Agata criou sua obra, que é tão híbrida quanto limítrofe; a rigor, fez seu filme, fazendo amor. Híbridos também são este artigo hipertextual e a videoperformance e o livro-objeto com os quais compõe um percurso crítico multimodal sobre Aka Ana. Tanto aqui, quanto em Livro-bichobjeto, a pessoa leitora tem em mãos textos para serem lidos, percorrendo-se a superfície da palavra ao bel-prazer. No livro-objeto, essa superfície é a página, a ser tocada diretamente através da materialidade do papel; neste hipertexto, a superfície da palavra é a tela, cujo toque virtual se dá pelo intermédio do mouse. Em ambos, a palavra como corpo erótico de Aka Ana vibra, seja com o tátil da plasticidade, seja com o háptico das texturas virtuais, recobrando o tato dos corpos que se tocam no filme. Neste, dois são os tipos de superfície que se entremeiam: a tela do corpo (a pele) e a tela da memória (a imagem). O resultado dessa conjunção é uma hapticidade que tende a “engolfar” o espectador (MARKS, 2001).
Foi escutando esse elo-Eros que por Aka Ana me enredei, cientificamente falando. Mas foi pelo grão da imagem, primeiramente, grão a grão, pelo buraco da fechadura, que quis conhecê-lo mais e mais e mais. Como se já soubesse o caminho ou o adivinhasse... Como se já esperasse receber suas cartas de filme-carta, como se a mim elas fossem endereçadas... Como se o filme tivesse sido feito para me chegar como extravio, a fim de ganhar vida e continuar a deriva... poética, e agora científica...
No entanto, Aka Ana não é feito de palavras eróticas que se adensam, mas sim de uma cadência palavral como se ao pé do ouvido estivesse, da qual emana a orgasmia poética que faz desse filme o gozo do “corpoimagem” (DULTRA, 2018). Assim, se a pele da palavra poética goza, a faz inteira tremer – e é indizível o que sente e é também inescrevível, por isso recorrer às texturas objetuais de um livro-objeto. “Redescubramos o tacto” (MARTINS, 2011, p. 21), prescreve o poeta em suas Lérias... O tato coberto, talvez, por codificações que fazem dos encontros clichês: a prostituta que encontra o cliente, o fotógrafo que encontra a manequim, o cineasta que encontra a atriz, a câmera que encontra o cenário, um sexo que encontra o outro, a carta que encontra o destinatário...
A despeito dessa série de correspondentes, D’Agata des-cobre o tato, o tato de fato, o tato do falo, rompendo a fronteira voyeurista da lente, tão própria ao fotógrafo: “Não é o olhar que um fotógrafo tem sobre o mundo que me interessa, mas a sua relação, a mais íntima, com ele” (D'AGATA, 2007 apud MIGLIORIN, 2008, p. 127). Assim, o artista se coloca entre os corpos filmados, na radicalidade de estar dentro deles, lhes recobrando um lugar, para além de toda utopia: “(...) no amor o corpo está aqui.” (FOUCAULT, 2013, p. 16, grifo do autor). É sua própria derme de artista que D’Agata imprime na película cinematográfica, entregando ao espectador matéria para o voyeurismo, como um convite – à pornografia? Ao erotismo? Ao obsceno? Ao sensual? Sobre o período de imersão, D’Agata declarou:
"Eu me imiscuí em suas vidas, avançando na obscuridade com a perspectiva confusa de um cinema de excesso. Fotógrafo, eu não posso, impunemente, escapar da realidade, nem me curvar a ela. A única saída possível: renunciar ao discurso e fazer um relato bruto de minhas transgressões, entre a forma e a matéria, a palavra e a carne, o olhar e a experiência. Uma lenta agonia sob o selo da consciência e da ironia." (D’AGATA, 2013, s.p., tradução nossa)[8]
Sensualidade é a propriedade atribuída ao que dá prazer pelos sentidos. Obscenidade, derivada do latim scena, é o que está fora da cena; sexualmente falando, o que fere o pudor. Pornográfico pode ser considerado o ato de colecionar material obsceno. Por outro lado, pornografia é também, literalmente, “escrito sobre prostitutas” (do grego pornographos: pornē, “prostitutas”; graphos, escritos). Do ponto de vista mercadológico, a indústria pornográfica vende o sexo através da imagem dos corpos. A finalidade não é o prazer do consumidor (muito menos a fruição iconográfica), mas sim o capital gerado pelo fluxo de vendas. Daí nos questionarmos o quanto há de pornográfico e o quanto há de documental em Aka Ana, já que é um filme feito com a atuação de profissionais do sexo exercendo o seu ofício – no limite, foram 120 noites de trabalho, 120 como no romance de Marquês de Sade (2018), Os 120 dias de Sodoma ou a Escola da Libertinagem.