CRÍTICA INTERMÍDIA A PARTIR DA LITERATURA EXPANDIDA DO FILME AKA ANA, DE ANTOINE D’AGATA: VIDEOPERFORMANCE, LIVRO-OBJETO E HIPERTEXTO

Resumo/Abstract

Este trabalho parte da noção de literatura expandida para analisar o filme Aka Ana (França, 2008), do fotógrafo Antoine D’Agata. A obra em questão é considerada uma escritura expandida, que trespassa os sentidos do espectador pela palavra poético-reflexiva (áudio em japonês e legenda em francês). Tal verbalidade se encontra amalgamada nos elementos visuais e performativos, e transmutada por eles, resultando em uma interseção hibridizante que faz de Aka Ana uma obra intermídia. A fim de abarcar tal complexidade, este trabalho é uma leitura crítica do filme tecida de modo também ampliado, sendo apresentado sob a forma de uma crítica intermídia composta pela convergência audiovisual, plástica e verbal, que inclui uma videoperformance, um livro-objeto e um hipertexto, formatos estes híbridos por natureza. Portanto, tem por característica a interpenetração entre materialidades, formatos, tipos de mídias e linguagens. Sua narrativa partilha de conhecimentos e impressões sobre Aka Ana; ela não é ficcional – trata ensaisticamente da ficção do filme. Escrito através da bricolagem textual, o hipertexto deste trabalho estende e aprofunda o texto escrito no livro-objeto e lido na videoperformance. A página online inicial possui duas entradas principais de leitura, além de “móbiles” com citações que flutuam hipertextualmente através de botões e criam labirintos de navegação, aproximando sua forma do perfil do leitor imersivo próprio das redes digitais. Com esta proposição, visa-se a acompanhar o avanço das tecnologias de produção de texto, tomando por contexto o tema da expansão nos modos de ler, a partir das novas relações com a virtualidade da página-tela e a tangencialidade do papel. Nesse sentido, o desafio deste trabalho é proporcionar ao leitor uma experiência intermidiática dentro da esfera científica, uma vez que o hipertexto possibilita interações que fazem de cada percurso uma leitura singular, ampliando as possibilidades de polissemia já próprias da linguagem.

Palavras-chave: Antoine d’Agata; literatura expandida; livro-objeto; videoperformance; hipertexto; artes do livro; artes do vídeo; intermidialidade; crítica intermídia.

 

 

INTERMEDIA CRITICISM FROM THE EXPANDED LITERATURE OF THE FILM AKA ANA, BY ANTOINE D’AGATA: VIDEOPERFORMANCE, BOOK OBJECT AND HYPERTEXT

Abstract: This paper starts from the notion of expanded literature to analyze the film Aka Ana (France, 2008), by photographer Antoine D’Agata. The work in question is considered an expanded writing, which pierces the viewer's senses through the poetic-reflexive word (audio in Japanese and subtitles in French). Such verbality is amalgamated in visual and performative elements, and transmuted by them, resulting in a hybridizing intersection that makes Aka Ana an intermedia work. In order to encompass such complexity, this work is a critical reading of the film woven in an expanded way, being presented in the form of an intermedia critique composed of audiovisual, plastic and verbal convergence, which includes a video performance, an object book and a hypertext, these formats are hybrid in nature. Therefore, its characteristic is the interpenetration between materialities, formats, types of media and languages. His narrative shares knowledge and impressions about Aka Ana; it is not fictional – it deals essayically with the film's fiction. Written through textual bricolage, the hypertext of this work extends and deepens the text written in the book-object and read in the video performance. The home online page has two main reading entries, in addition to “mobiles” with quotes that float hypertextually through buttons and create navigation mazes, bringing their form closer to the profile of the immersive reader typical of digital networks. With this proposition, the aim is to follow the advancement of text production technologies, taking as a context the theme of expansion in ways of reading, based on new relationships with the virtuality of the page-screen and the tangentiality of paper. In this sense, the challenge of this work is to provide the reader with an intermedial experience within the scientific sphere, since hypertext enables interactions that make each path a unique reading, expanding the possibilities of polysemy already typical of language.

Keywords: Antoine d’Agata; expanded literature; book object; videoperformance; hypertext; book arts; video arts; intermediality; intermedia criticism.

O trabalho em tela descreve e analisa o filme Aka Ana (França, 2008), do fotógrafo Antoine d’Agata, considerando a obra como uma escritura expandida e discutindo alguns dos temas que a circundam. Este hipertexto foi escrito através da bricolagem, sendo seu formato inicial um caderno médio com miolo serrilhado formando vários quadrantes. Estes serviram de módulos interdependentes para a escrita à mão do texto no papel, que depois foi cortado nas marcas de serrilho e dobrado, em uma montagem feita durante a videoperformance Isto não é um bicho-papão: resenha crítico-criativa do filme Aka Ana ou simplesmente homenagem à arte relacional em tempos de isolamento social (2020). As ações sobre o caderno realizadas durante a gravação do vídeo resultaram na obra Livro-bichobjeto (2020), um livro-objeto que faz citação plástica direta à obra Bichos (1960), de Lygia Clark

A possibilidade de dupla entrada para a leitura do livro-objeto está materializada na existência de duas capas, em lugar de uma capa e uma contracapa como apresenta o formato tradicional do livro, não havendo hierarquia entre elas. Por isso, na versão material, o nome da obra se encontra nas páginas centrais, deslocando para dentro a chave trazida pelo título e os sentidos que este carrega, a fim de instigar no leitor seus próprios sentidos para ler o livro-objeto. Com o objetivo de transcriar essa relação entre escrita e leitura no texto agora em tela, são apresentados como dois portais interligados cujos interiores estão habitados por diversos móbiles flutuantes.  Para acessá-los, clique nas imagens das capas - ou aqui & aqui.

O formato crítico-criativo faz acontecer modos de ler singulares, capazes de afetar também através da forma. Forma esta implicada no conteúdo temático das “malhas da leitura”, pois todo este trabalho é um “trabalho de citação”, no qual, segundo Antonie Compagnon (2007), toda escrita é uma reescrita, citação de escritas anteriores, mesmo quando não se sabe de qual origem. Por outro lado, apontando de maneira sistemática, dois são os tipos de citação direta a serem encontrados no texto a seguir: a) colagem por encaixe (são os trechos apropriados em que já não se vê o recorte, nem a cola, não fossem as aspas, o itálico ou o recuo de margem; eles estão inseridos por contiguidade no corpo do texto, em contexto diferente do original, para aproveitar as palavras exatas ou a forma de dizer do outro autor); b) colagem por aplicação (são os trechos dos hiperlinks que circundam o texto, compondo blocos hipertextuais que tramam diferentes texturas a depender da rota trilhada por cada leitor, podendo funcionar como continuidade ou quebra desta).

Além das intertextualidades acima indicadas, o texto apresenta como trabalho de citação a relação entre Aka Ana e o livro Madame Edwarda, de Georges Bataille (1978). D’Agata estabelece uma relação transmidiática com o livro, já que se baseou nele para roteirizar sua obra audiovisual – não como uma adaptação cinematográfica, mas como um roteiro de sensações a serem vividas em cena. Desse modo, o realizador não simplesmente prolonga a vida do referido livro, mas a desdobra em outra vida, como poema Herberto Helder (2014): “Escrevi uma imagem que era a cicatriz de outra imagem” (HELDER, 2014, p. 438). Assim o pretende também este trabalho, que desdobra Aka Ana em outras criações – multifacetadas, interrelacionadas e autônomas, constituindo uma zona  cinzenta entre a reflexão e a poética.

Ainda sobre a trama de criação, Harold Bloom (2003) propõe a “desleitura” como exercício da autonomia criativa diante do texto lido, uma liberdade de invenção a partir dele, sem necessidade de autorização, nem prestação de conta de qualquer herança poética. Nesse sentido, o autor afirma: “(...) não existem textos, apenas relações entre os textos.” (BLOOM, 2003, p. 23, grifos do autor), como proposto também por Compagnon (2007). Traçando um paralelo com tal perspectiva, a obra Livro-bichobjeto é um modo de “desler” Aka Ana, que, por sua vez, é uma desleitura de Madame Edwarda.

Sendo o filme em questão considerado uma “escrittura expandida” (SANTOS; REZENDE, 2011), é condizente que clame por uma crítica também expandida (FREITAS; PEREIRA, 2015), um modo de lê-lo que amplie a relação escrita/leitura e o que se entende por ela. É nesse sentido que proponho a você, pessoa leitora, um modo de ler expandido, suscetível a saltos, fissuras, enlaces, volteios, tateando as sinuosidades do percurso, mesmo longe da incontornável materialidade do livro-objeto.

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