Assim, temos ampliado o pensar sobre as prostitutas de Aka Ana, através de suas cartas, que revelam relações insondáveis com o ofício de vender, de alugar o próprio corpo – embora Lira afirme que “A commodity aqui não é o corpo, mas sim nossos serviços.” (LIRA, 2017, s.p.). Eis que tudo não passa de uma transação comercial – “Até aqui o capital nos rouba nossa transa.” (LIRA, 2017, s.p.). Daí que de “putas”, as prostitutas se tornam “profissionais do sexo”, cuja legalização da profissão oscila entre o empreendedorismo sexual, a mercantilização do corpo da mulher e o moralismo. Disputas sociais, políticas e, sobretudo, econômicas, pois “sexo é também trabalho. E o trabalho é que fode com a gente.” (LIRA, 2017, s.p.).
Como se negasse ou resistisse à relação capitalística que o cineasta e o fotógrafo têm para com sua obra imagética a ser vendida, D’Agata se infiltra, com o próprio corpo, nas noites de Shinjuku, região de Tóquio que, de um lado ostenta riqueza, de outro, abriga um submundo repleto de bares de strip-tease, casas de massagem, prostíbulos e motéis claustrofóbicos – dentre eles, a locação das filmagens: “Hotel Oishi, quarto 19, cama redonda e vermelha.” (D’AGATA, 2017, s.p.).
É a partir da imagetização do ato sexual, não de um ponto de vista especulativo, mas sim “autoral”, executado em carne viva, que D’Agata propõe vender a imagem de seu corpo em ação. Não apenas seu olhar é trabalho em Aka Ana (como é comum para um fotógrafo), mas também sua pele, seus fluidos, seus neurotransmissores, seus músculos... Toda a engenhosidade corporal que trabalha para a penetração sexual naquelas que eram, antes, prestadoras de serviços sexuais, mas agora vendem a imagem de seus corpos em performance e se põem no risco de atravessar com D’Agata o desconhecido de um filme feito a partir de um “diário íntimo”.
Imagens que não são prostituídas aos cânones de beleza feminina, nem cinematográfica, pois tanto peles quanto película são escarificadas. Superfícies marcadas pela tensão entre a vida vivida e o invivível da vida. Uma interseção de espaços e tempos marginais que envolvem excitação sexual e drogadição, e cujo único figurino em todo o filme é a epiderme – corpos vestidos apenas com cicatrizes, suor e uma tatuagem imaginária em que se lê: “carta-me”.
Apesar do cruzamento de mundos que dá a ver e ouvir, Aka Ana não é uma leitura ocidental da cultura do Japão, seja esta tradicional ou contemporânea. Como chamou D’Agata, são “experimentações íntimas” realizadas com japonesas por conta de sua residência artística em Fotografia ter sido desenvolvida na VILLA KUJOYAMA/CULTURES FRANCE (2006), programa cultural francês sediado em Quioto, no Japão. A escolha por mulheres não-artistas para o filme foi por D’Agata querer relações vividas, e não encenadas, como o fariam atrizes.
Mas, afinal, é um homem europeu enredando mulheres orientais ou um fotógrafo inconsequente afim de uma transa a mais? Aka Ana possui o poder da imagem sexual ou a potência da imagem corporal (DIDI-HUBERMAN, 2011)? Se ainda não sabemos o que pode o corpo (SPINOZA, 2013), como saberemos o que pode sua imagem? “Por que as trabalhadoras do sexo não podem permanecer na indústria do sexo e demandar um melhor negócio?” (LIRA, 2017, s.p.).
E ainda com Lira: “Nunca tive que vender minha hora/buceta, hora/cu, minha hora/boca para sobreviver.” (LIRA, 2017, s.p.). Apenas minha hora/criação e para uma sobrevivência de outra ordem, porém nunca houve quem a comprasse. As agências financiadoras de pesquisa querem hora/produção, produção-de-qualquer-coisa-útil, mas tudo o que produzo é criando e por isso se encontra na esfera de inutilidades. Produzir sem o compromisso de “obrar” é criar. É alívio. É a leveza necessária para uma pesquisa que se quer invenção, mas não somente a dos superlativos que já vêm com patente ou por esta esperam.
Invenção de invencionices miúdas, das quais derivam mais que teses – se desdobram tesões: de vida, de escrita, de pensamento, de artesania... Que fazem da pesquisa este instante incontável.[1] Então tornada ficção científica? (De uma ficção urgente como a da escrita, da escrita de cartas, da escrita de cartas nunca respondidas, da escrita de cartas nunca respondidas porque não foram lidas... cartas nunca enviadas.)
Se o que faço em pesquisa é ficção, é tão ficcional quanto o sexo em Aka Ana: é com pele, é com muco, é nas dobras, é dentro, é com cheiro, com gosto, com risco. É a sombra da imagem e o murmúrio da palavra que habito. Porém, se “sexo é também trabalho”, essa criação ficcional talvez não escape à lógica a que tenta resistir, sendo, portanto, também trabalho. Portanto sou quase uma p... que pesquisa! Tomada por todos os lados, qual Lira, que tenta não se vender, nem se alugar, mas não consegue. Então entrar no jogo da publicização quase como numa jogatina, com libertinagem, desafiando os parâmetros de avaliação, fazendo abalar os critérios padronizados, bem passados, cheirosos e engomados do bom comportamento periódico.
Sim, se prostituir às publicações, mas para gerar nelas filhos monstruosos. Nesse sentido: Não publicarei para a publicidade, não penso em encarar a sério a arte e a vida.[2] É o poeta-professor quem tem mil vezes razão. Perseguindo, pois, a criação do monstro, estou em constante recusa do filho legítimo oferecido pela etiqueta científico-acadêmica (e até mesmo artística em seus beletrismos e suas belas-artes...).